quinta-feira, 8 de maio de 2014

Vida

Não sei quanto tempo passou. Ouço batidas na porta. Levanto-me anestesiado. Enxugo-me sem nenhuma vontade, mas aos poucos a passagem da toalha vai se tornando áspera. Ainda estou com raiva. Abro a porta com força exagerada, sento-me na cadeira e continuo enxugando o cabelo.
— Você demorou... – Ginger parece sentir a minha raiva.
— ...
Ela se aproxima e laça meus ombros com seu braço. Eu a afasto subitamente. A Ginger fica sem reação.
— O que você está fazendo comigo?
— Como assim?
— Por que você fica me enchendo de esperança? Você não sabe que sou um perdedor?
— O que deu em você?
— Escute – seguro no braço com mais força do que deveria – o que você vê? – quase repito a frase de ontem, porém no sentido oposto e estrago tudo.
— Você está me machucando – eu a solto.
— Por que você insiste? Por que você insiste? Não percebeu que nunca passarei de um grande perdedor? Aquele que sempre vai te decepcionar? Que no grande fim vou fraquejar? No fim vou estragar tudo. Você não percebe? – ela desvia o rosto.
— Olha pra mim! Olha! Você não vê? Se eu tivesse algum resquício de ... eu já não estaria bem? O que você vê em mim a não ser fracasso? O que foi a minha vida a não ser fracasso?
— ...
Fico um tempo em silêncio, mas continuo.
— Você... você me controla. Você quer que eu seja uma pessoa que não sou. É evidente que você é muito mais inteligente do que eu. É evidente que você sabe mais do que eu. Você me manipula para que eu seja a pessoa que você quer, não é??
Ela está prestes a chorar, mas continuo falando.
— O que você quer é um homem perfeito. Encontrou em mim uma massa maleável. Um boneco ingênuo. Um sonhador bobo. Mas você nunca soube do idiota, bêbado e fracassado que sou. Soube, sim, mas ignorou. Mas, e se eu quiser ser um bêbado fracassado? Você vai respeitar meu livre-arbítrio? Você vai continuar gostando de mim, mesmo assim? – respiro – no fundo sou seu reflexo, não é? A sua parte ruim. Você quer que eu me redima. Melhor, você quer me redimir para que você também possa se redimir. Acha que me consertando pode se consertar também. Não é o que você está fazendo? Sou seu experimento máximo, não sou?

O que acontece? A Ginger está chorando. Muito. Como quem não sabe mais como expressar tanta mágoa. E eu... eu sinto, na verdade sinto não como indivíduo, e sim como gênero humano. A grande consternação de ser tão frágil, tão inseguro e miserável. Eu choraria junto se pudesse. Eu me prostraria diante dos seus pés se pudesse. Se eu pudesse desaparecer para sempre da sua vida, eu o faria. Mas eu era a sua miséria. Ela era a minha miséria. Éramos dois náufragos tentando se apoiar um no outro para escaparmos do inevitável afogamento. Por fim, entre soluços e tristeza infinita, Ginger balbucia as palavras que desmontariam a minha estupidez e marcariam para sempre a minha alma:
— Agora me responda... Afinal, pra que serve o amor?

“Salve-me do meu coração insano”, teria dito Joyce. De joelhos no chão, penitencio o meu maior pecado agora, não mais oculto: a soberba. Eu era um monstro de ignorância patinando no meu próprio estratagema de vaidade. Até quando porém precisaria me arrastar no obscuro vale das minhas sombras, sendo refratado e refletido com sabedorias obtusas adquiridas de maneira errônea? Eu não pensava, eu não refletia, eu nem sequer sentia. Eu era um completo cego, um vislumbre da caverna de Platão, enxergando com os dedos o mundo de cor. Formado ao longo do tempo, por muito tempo, torto, resignado, ignorando o verdadeiro sentido de estar só, compreendia tudo errado. Tinha apenas uma única verdade que eu acertava mais por convicção do que entendimento: estalactite. Estalagmite. Eu era o que se forma em cima e embaixo da caverna, de tanto pingar solidão. Mas quantas quedas são necessárias para eu compreender a minha natureza de gota d’água? Quantas vezes eu preciso desmoronar para compreender a fragilidade das minhas convicções? E quantas vergonhas eu preciso sentir para recobrar o sentido dos meus erros? Eu estava arrependido ou estava derrotado? Quanto tempo o fio de egoísmo que ainda escorre da minha alma demoraria para formar novamente um oceano de ignorância onde eu voltarei a mergulhar? Até quando vou ficar oscilando na montanha russa dos sentimentos, tomando decisões e fazendo julgamentos errados? Quando vou fazer a coisa certa? Quando? Continuo de joelhos até me mortificar. Depois de muito tempo me levanto debilmente e sento-me na cadeira. Mas continuo mais ajoelhado do que nunca. Deslizo as mãos e a cabeça deitando na mesa. Coloco a cabeça entre os braços dobrados, encostando um dos lados do rosto no braço esquerdo. Penso na Ginger. Como deve ter sido doloroso ficar ouvindo minhas baboseiras. Algo se contorce dentro de mim como se fosse uma faca afiada. E agora? Chegou ao fim? É assim que termina a minha estupidez máxima? O que será que a Ginger estaria pensando? Ela saiu pela porta sem dizer uma palavra. Fiquei ouvindo o barulho do salto se afastar pelo corredor. Lutei para não sair correndo atrás dela. Depois, fiquei sem forças para ir até a janela e vê-la desaparecer na esquina. Mas o que será que ela estaria pensando? Será que ela pensou em me perdoar porque compreendeu por que eu dissera tudo aquilo? Ou na intensidade da escala de perdão e do gênio tempestivo dela o que fiz é algo imperdoável? O que será que ela estaria pensando? Às vezes, eu acho que eu a entendo e às vezes acho que não a entendo. De jeito nenhum. Deve ser a porção que eu ainda não sei e que não aprendi. Mas o que será que ela estaria pensando? Tento levantar dezenas, centenas e milhares de hipóteses, mas chego à conclusão de que nunca vou saber. Eu não vou saber e não vou entender. Sinto mais um pouco de derrota. Deslizo um pouco mais a cabeça deitando o tronco completamente na mesa. O que mais eu poderia fazer? O que um idiota, um perdedor como eu poderia fazer? O que um insipiente como eu poderia fazer? O que eu poderia fazer para mudar isso???? O que eu posso fazer para consertar tudo isso???? Eu grito, embora estivesse completamente imóvel e em absoluto silêncio. Contorço novamente todas as dores e enrubeço tanto de vergonha que pareço afundar na mesa. Mas o que há depois da queda? O que é que posso fazer depois de tudo isso? O que tenho feito todos esses anos para me erguer novamente? O que tenho feito para consertar as coisas? O que tenho feito para remediar e voltar novamente para o caminho certo? Procuro similaridades, como a Ginger teria dito. Por que comecei a escrever? Por que quis prestar um vestibular difícil? Por que quis viver do jeito que eu realmente queria? O que me fez arder em chamas nos dias e noites em que ninguém acreditava em mim? “Tentar!!!”, levanto subitamente. “Mas como?” Sento-me subitamente também. Ok, pode rir. Para mim também foi engraçado. Mas a situação continua séria. Mas o que eu poderia tentar? Tentar o quê? O que era “tentar”? Agora, quase na posição de O Pensador, tento pensar sobre arder em chamas, de Bukowski. Qual era o meu verdadeiro desejo. O que eu realmente queria. Eu quero a Ginger de volta. Do fundo do meu coração, era isso que eu queria. Eu queria ouvir suas risadas soltas ressoar pela sala, seu jeito espontâneo de me abraçar quando menos espero, sua voz sempre alegre em contraste com a minha sempre sorumbática e grave. Queria ver novamente como ela abaixa e inclina a cabeça quando sorri e coloca o cabelo por trás da orelha. Queria sentir a sua intensidade de vida irradiar por onde ela passa. Queria aquele olhar penetrante me fitando, ora severa ora compreensiva, me fazendo entender o que eu não sabia. Eu a queria na minha vida como nunca quis ninguém. Eu queria ficar com ela por mais tempo de vida que pudesse. Tinha receio de dizer, mas eu a queria para o resto da minha vida. Já não havia indecisão. Era isso que eu queria. Podia ser ingênuo ou precipitado, mas era isso que eu queria. E eu precisava fazer algo. Urgente. Mas deixo o tempo passar. Tentando compreender e me concentrar na minha última decisão e sentimento, eu deixo a minha vontade arder em chamas.


Mr. Blues & Lady Jazz - Nick Farewell

Nenhum comentário:

Postar um comentário