quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Nutshell

Sempre foi falante, desde a infância, quando inventava amigos imaginários para conversar por ser criada sozinha, falava sem parar, se perguntavam uma coisa, a menina respondia sete, sempre gostou de falar e sempre acreditou ter algo pra dizer, às vezes até cantarolava músicas para sua avó que sorria ao ouví-la. Gostava de aprender diversas coisas, se interessava muito pelos números e, muito antes de aprender a ler ou até mesmo de ir para a escola, já fazia pequenas contas em seu caderno de matemática. Pulou a pré-escola, naquela época as crianças que frequentavam jardim de infância ou pré-escola só aprendiam a pintar e ela queria saber mais que isso, achavam que ela queria saber mais que isso, afinal, ela já fazia contas, as outras crianças não, elas apenas sabiam pintar. A menina não sabia pintar, foi a primeira da sala a aprender a ver horas em um relógio analógico, foi a primeira a aprender a ler - e como lia! a menina tinha uma leitura incrível e adorava emprestar livros da biblioteca da escola -, a primeira a saber toda a tabuada sem contar nos dedos, foi a primeira a escrever de caneta sem medo de errar, foi a primeira em diversas coisas, se destacou no primeiro ano de escola, mas não sabia pintar. Carregou por anos a frustração pela professora ter exposto aos outros alunos o desenho de páscoa mal pintado e com cores absurdas, pela professora ter comparado seu desenho com o de uma colega de classe e a atacado com palavras que na época a deixaram triste demais e a fizeram chegar em casa e tentar apagar aqueles riscos e pintar o desenho com cores e sombreamento igual ao desenho de sua colega, igual ao desenho que a professora elogiou. Fez alguns amigos na escola, mas sempre foi odiada por muitos, talvez hoje em dia chamem de bullying as situações pelas quais essa menina passava nos seus longos anos no colégio, por isso ela sentia vergonha de ser o que era. Sentia vergonha do seu peso abaixo do normal, sentia vergonha das pernas finas e dos apelidos que isso resultava, sentia vergonha pelas "orelhas de abano", por isso nunca prendia o cabelo, sempre resultava em piadas ofensivas, mas, mesmo com todo o convívio ruim e a tristeza que isso trazia, ainda era uma das melhores alunas da sala, com seu ótimo desempenho, se interessava por química, física e matemática, mas adorava também as aulas de história. Mesmo com todos os indicativos de futuro promissor, o ensino médio destruiu o destaque intelectual e o substituiu pelo destaque solitário, ela ainda tinha amigos, mas preferia não ter, se sentia mal por muitas coisas e situações, queria ler filosofia, queria discutir nas aulas de sociologia e queria ser avulsa, alheia a tudo aquilo que fazia parte da sua rotina escolar. As ofensas pela sua aparência se resumiam nessa época em comentários do tipo "ela é estranha, esquisita", mas ela não se importava mais, só queria estar confortável consigo mesma. Foi então que dez anos após evitar os desenhos e fazê-los obrigatoriamente nas aulas de arte, ela se encontrou no lápis e papel, ali conseguiu sua fuga, ali era uma em um milhão, única, autêntica, transparente e já não fazia mais sentido se sentir incapaz pelo fato de não ter pintado direito um desenho quanto tinha seis anos de idade, ela queria encontrar aquela professora na rua e não mais xingá-la por fazer isso com uma criança, mas agradecê-la pelo trauma, pois a menina fez do trauma o seu maior prazer, ela sempre gostou de encontrar abrigo e aconchego na dor. Após as notas baixas e o desempenho baixo, nenhum professor acreditava que ela conseguiria passar num vestibular, ela nem sabia exatamente se queria mesmo passar, pois enquanto todos estavam estudando, fazendo cursinho e se dedicando, ela passava as tardes em frente ao computador ou lendo algum livro aleatório, não tinha chances, mas quis afrontar seu pai que duvidava da sua capacidade de passar em um curso concorrido na faculdade de sua cidade, por isso se inscreveu pra algo que nem queria, pra ter certeza que não ia passar e, ao mesmo tempo que queria mostrar pro pai que era capaz, queria que ele tivesse certeza de sua incapacidade. Ah, ela queria tanta coisa naquela época, queria cursar tantas áreas diferentes! Passou no curso que não queria, a família orgulhosa, somente ela e mais um colega da sua classe passaram nesse vestibular, alguns professores quase não acreditaram, ela resolveu cursar. O primeiro ano foi incrível, estar em uma faculdade, transições, construir um futuro, era tudo novo, bonito e encantador, fez novos amigos, queria aproveitar, queria sair, queria se divertir, gastou tanto naquelas festas open-bar, foi o melhor ano da sua vida. O segundo, ah, o segundo foi horrível, odiou tudo, nada mais tinha graça, nada mais importava, ela só queria sumir, largar tudo, desistir de tudo. Odiou tanto o segundo ano que resolveu fazê-lo novamente pra ver se consegue melhorar algo. Talvez o correto fosse chamá-la de mulher, mas no fundo ainda é uma menina, até a aparência mente a idade. Aqueles óculos de lentes grandes, longos cabelos pretos e as unhas roídas até doer. Ainda é a mesma menininha falante, mas não mais tão dedicada, não mais tão entusiasmada, não tem mais tanta vontade de ser aquilo que os outros estão tentando ser também. Ela não sabe mais o que fazer e não sabe lidar com a impotência.

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